Levando a sério os interesses dos animais
O livro Introdução aos Direitos Animais: Seu Filho ou Seu Cachorro? escrito pelo professor Gary L. Francione representa uma mudança essencial no entendimento da relação entre animais humanos e não humanos ao mostrar claramente, através de inúmeros exemplos, que a nossa sabedoria convencional já demonstra preocupação com os animais não humanos, mas que, no entanto, nossas atitudes contrapõem-se severamente à afirmação de que levamos os interesses deles a sério.
Para compreender melhor essa inconsistência entre o que dizemos e como agimos, uma análise sobre o status moral dos animais não humanos é feita no livro baseada em duas intuições morais amplamente aceitas que envolvem o conceito de “necessidade”. A primeira intuição diz que podemos preferir os humanos em situações de “necessidade”, enquanto que a segunda intuição afirma ser errado infligir sofrimento “desnecessário” aos animais.
Com relação à primeira intuição, o conceito de “necessidade” opera na forma de que se estivermos numa situação de emergência real, podemos preferir o humano ao invés do não humano. Um exemplo exposto no livro é o da casa em chamas. Seu filho e seu cachorro estão nela e você só tem tempo de salvar um e escolhe salvar seu filho. No entanto, essa situação hipotética não é adequada, pois qualquer um salvaria seu filho mesmo que o outro ocupante da casa fosse um outro humano. Num outro exemplo, um cachorro e um humano são colocados na casa, e você não conhece nenhum dos dois. Novamente, a sua intuição moral lhe direcionaria a salvar o humano. No entanto, se o cachorro for um membro de sua família, essa intuição ficaria enfraquecida. Contudo, em termos gerais, e de modo abstrato, o julgamento moral da maioria diz que é melhor salvar o humano do que o cachorro.
No que se refere à segunda intuição de que é errado infligir sofrimento “desnecessário” aos animais, se numa situação de emergência verdadeira escolheríamos o humano, isso não se aplica de forma alguma quando não estamos inseridos em cenários emergenciais, como o da casa em chamas, e não temos nenhuma necessidade de infligir sofrimento aos animais. Sabemos que os animais não são coisas, mas sim, como nós, seres sencientes, que não querem experienciar dor e sofrimento. Desta forma, ao dizer que levamos a sério esse interesse que os animais têm em não sofrer, concordamos, por consequência, que não deveríamos impor nenhum sofrimento desnecessário a eles.
No entanto, o problema apontado no livro é que não praticamos o que dizemos porque “a grande maioria dos usos que fazemos dos animais somente pode ser justificada pelo hábito, a convenção, o divertimento, a conveniência ou o prazer. Em outras palavras, a maioria do sofrimento que impomos aos animais é completamente desnecessária, seja qual for a nossa interpretação dessa noção.” (p.26) Todos os usos de animais que fazemos rotineiramente não abrangem situações de emergência real e não envolvem cenários da casa em chamas.
Entendemos, em parte, a ideia que permeia ainda hoje o modo confuso de pensarmos sobre os animais moral e socialmente – alguns animais são membros de nossa família, outros são jantar – denominado pelo autor como esquizofrenia moral, através da análise do status moral dos animais antes do século XIX. Nessa época, os animais não humanos eram considerados coisas e os humanos não tinham nenhuma obrigação direta moral ou legal em relação a eles. O filósofo René Descartes, por exemplo, afirmava que eles não eram nada mais do que máquinas criadas por Deus e não reconhecia que eles sentem dor e prazer. O filósofo Immanuel Kant, por sua vez, afirmava que os animais sentem dor e prazer, mas que eles podem ser usados como meios para os fins dos humanos por não serem autoconscientes.
Contudo, a partir do século XIX, acolhemos moral e legalmente o princípio do tratamento humanitário, ou seja, a noção da obrigação moral que temos de não infligir sofrimento “desnecessário” aos animais não humanos, que teve origem na teoria do filósofo utilitarista Jeremy Bentham (1748-1832) que argumentava que, embora um animal não tenha uma mente igual à humana, as diferenças não são significativas para negarmos o seu sofrimento. Para Bentham, a questão não é se os animais têm a capacidade de raciocinar ou falar, mas se eles têm a capacidade de sofrer, e ele reconhecia que muitos animais não humanos são sencientes, isto é, que eles sofrem, sentem dor e prazer.
“Esse princípio de Bentham representou nada menos do que uma revolução no nosso pensamento moral sobre os animais, pois rejeitou as visões daqueles que como Descartes, afirmavam que os animais não eram sencientes e não tinham interesses, e as daqueles que, como Kant, afirmavam que os animais tinham interesses, mas que esses interesses não eram moralmente significativos porque não podíamos ter nenhuma obrigação direta para com os animais, apenas para com os humanos.” (p.54)
No entanto, apesar de Bentham reconhecer que os animais são sencientes, o professor Francione aponta duas falhas graves na abordagem desse filósofo. Primeiro ao considerar que os animais não têm autoconsciência ou interesse em continuar vivos e segundo ao aceitar que humanos e não humanos são qualitativamente diferentes, permitindo que usemos animais como recursos substituíveis, mas não usemos humanos desta forma, “… [e]le tornou impossível tratarmos os interesses dos animais como moralmente significativos.” (p. 232) A problemática da visão de Bentham é explicada no capítulo 6, intitulado, “Ter nossa vaca e também comê-la: o erro de Bentham.”
Mesmo assim, as ideias de Bentham foram disseminadas, e influenciaram filósofos como Peter Singer, autor do livro Libertação Animal. A teoria de Singer tem semelhança com a de Bentham em dois enfoques. O primeiro é a sua percepção “de que os animais não têm interesse em viver (diferentemente do interesse em não sofrer) porque eles não são conscientes de si mesmos ou autoconscientes. O segundo é sua posição de que podemos aplicar significativamente o princípio da igual consideração ao interesse dos animais em não sofrer, sem lhes estender a proteção semelhante do tipo direitos para seu interesse em não ser considerados propriedade dos humanos.” (p.235)
O princípio do tratamento humanitário, advindo da teoria de Bentham, também funciona como um alicerce padrão às leis do bem-estar animal em países como Estados Unidos e outros. Essas leis propõem-se a proibir sofrimento desnecessário deixando transparecer que a maioria de nós tem algum tipo de consideração pelos animais. No entanto, essas leis não conseguiram até hoje propiciar nenhuma proteção adequada aos animais porque tentam equilibrar os interesses dos humanos com os interesses dos animais, e se os nossos interesses pesarem mais, eles imperam e o sofrimento do animal passa a ser considerado necessário.
Um ponto de suma importância que explica o motivo do fracasso dessas leis de bem-estar animal é a ponderação que o autor faz sobre o status dos animais como nossa propriedade.
“Os animais são mercadorias que possuímos e cujo único valor é aquele que nós, como proprietários, escolhemos lhes dar. A condição de propriedade dos animais torna completamente sem sentido qualquer equilíbrio que, supostamente, se requeira sob o princípio do tratamento humanitário ou as leis do bem-estar animal, porque o que estamos realmente pesando são os interesses dos proprietários contra os interesses da sua propriedade animal.” (p.27)
Para o autor, essa noção não exige conhecimento sobre leis de propriedade ou sobre economia para concordarmos que a balança que tenta equilibrar os interesses dos proprietários com o da sua propriedade animal raramente, ou mesmo nunca, pesará a favor dos animais. Sendo eles propriedade, quando há vantagem econômica, é permitido menosprezar seus interesses e causar-lhes dor, sofrimento ou morte. Para que os direitos dos humanos à propriedade animal sejam amparados é sempre necessário tomar uma decisão que vai contra os interesses mais fundamentais dos animais como o de não sofrer e ter uma vida continuada mesmo que seja para satisfazer interesses humanos triviais como prazer, conveniência ou diversão.
“…[c]omo os animais são propriedade, e como temos um grande respeito pelo direito de propriedade, nós decidimos – antes mesmo de iniciar nosso processo de equilíbrio –que é moralmente aceitável usar os animais para comida, caça, entretenimento, vestuário, experimentos, testes de produtos e assim por diante. Ou seja, geralmente não questionamos se determinadas instituições de uso animal são necessárias; em vez disso, questionamos apenas se práticas específicas, que são partes daquelas diferentes instituições, são necessárias. Não perguntamos se é necessário comer animais, mas se o descornamento, ou a marcação a ferro em brasa, ou a castração do gado, é um componente necessário do processo de trazer os animais às nossas mesas – e para responder à pergunta olhamos para as práticas comumente aceitas da indústria alimentícia.” (p.122)
O livro esmera-se não somente por toda a sua conceituação e exemplificação a respeito da problemática da exploração animal como um todo, mas também pela assertividade no direcionamento de soluções ao concordarmos “que os animais têm um interesse moralmente significativo em não ser sujeitados a sofrimento desnecessário.” (p.159)
Assim, para que haja uma mudança efetiva na relação entre humanos e não humanos deveríamos parar de infligir sofrimento desnecessário aos animais através da aplicação do princípio da igual consideração, que, segundo o autor, não é algo exótico ou particularmente complicado e faz parte de todas as teorias morais. Aplicar esse princípio aos animais não humanos não quer dizer que os não humanos são iguais aos humanos. Somente quer dizer, que devemos tratar casos semelhantes de forma semelhante e como há pelo menos uma semelhança fundamental entre humanos e não humanos, a capacidade de sofrer, temos que “estender a mesma proteção aos interesses deles em não sofrer, a menos que tenhamos uma boa razão para não fazer isso.” (p.180) Proibições de inflição de sofrimento desnecessário aos animais somente farão sentido quando interpretarmos o conceito da necessidade de inflição de sofrimento de forma semelhante ao interpretarmos quando um humano está em questão.
No entanto, da mesma forma que não podemos proteger os humanos de todo sofrimento, também não conseguiremos fazer isso em relação aos animais não humanos. A proposição do professor Francione é de que os animais devem ser protegidos contra todo sofrimento causado pelo uso que fazemos deles como propriedade humana, e para que a aplicação do princípio de igual consideração seja eficaz, devemos dar aos animais, como damos aos humanos, o direito básico de não serem tratados como recursos, como escravos. Esse direito é a condição mínima para que eles realmente integrem a nossa comunidade moral porque, na condição de escravos, eles não podem ter seus interesses salvaguardados de modo significativo. Se o proprietário do escravo decidir tratá-lo bem, vamos proteger a escolha do proprietário. Se ele decidir tratar o escravo mal, essa escolha também será admitida. De acordo com o autor, “o direito básico de não ser considerado uma coisa é limitado e não proporciona, de modo algum, proteção contra ser usado com certa medida como meio para os fins alheios, ou proteção contra todas as formas de discriminação ou tratamento injusto.” (p.175)
Como no caso dos humanos, o direito básico é um direito essencial que diz que estamos inseridos na comunidade moral e que não podemos ser comprados ou vendidos, usados em experimentos biomédicos sem consentimento, caçados por esporte, usados para fazer sapatos com a nossa pele, e assim por diante, mas não especifica quais outros direitos que possamos ter. Também protegemos o interesse dos humanos em não ser tratados como recursos através do valor inerente igual, um princípio factível de que todos seres sencientes — e os animais inserem-se aqui por também serem sencientes — valorizam a si próprios, mesmo que ninguém mais os valorize. Se não reconhecêssemos que os humanos têm valor intrínseco ou inerente, eles seriam considerados como meras coisas, ficando assim excluídos da comunidade moral e com valor somente monetário.
No livro são apresentadas quatro razões que os humanos usam para não conceder aos animais o direito básico de não serem tratados como coisas.
“A primeira razão, às vezes associada à crença religiosa, é que os animais absolutamente não têm interesses e que, portanto, não há sentido lógico em lhes dar um direito básico para proteger seu interesse em não sofrer. A segunda razão é que os animais são nossos “inferiores espirituais” e que, embora eles possam ter interesse em não sofrer, Deus nos deu permissão para ignorar esse interesse. A terceira razão, frequentemente relacionada à segunda, e que há alguma característica natural, como a capacidade de pensar racionalmente, usar conceitos abstratos ou ser autoconsciente, que falta aos animais, e que justifica que lhes neguemos o direito básico de não serem tratados como coisas. A quarta razão é que, embora os animais tenham valor inerente, eles têm menos valor inerente do que os humanos e, portanto, não merecem que lhes demos o direito básico de não ser tratados como coisas.” (p. 190)
No entanto, nenhuma razão é moralmente aceitável para justificar a não concessão aos animais do direito básico de não ser propriedade alheia. Segundo o autor, dizemos, por exemplo, que os animais não podem pensar de modo racional, algo tão difícil de negar que muitos podem fazer isso quanto negar que os animais têm rabos. De qualquer forma, isso não teria nenhuma relevância do ponto de vista moral mesmo que fosse verdade. Bebês, por exemplo, não podem pensar de modo racional e nem por isso os sujeitamos a experimentos biomédicos dolorosos ou como fonte de comida ou roupa.
“Não há nenhuma característica que sirva para distinguir os humanos dos outros animais. Qualquer atributo que possamos pensar que torna os humanos “especiais”, e assim diferentes dos outros animais, é compartilhado por algum grupo de não humanos. Qualquer “defeito” que possamos pensar que torna os animais inferiores a nós é compartilhado por algum grupo dentre nós. No fim, a única diferença entre eles e nós é a espécie, e a espécie, apenas, não é um critério moralmente relevante para excluir os animais da comunidade moral, assim como a raça não é uma justificação para a escravidão humana, ou o sexo uma justificação para fazer das mulheres propriedade de seus maridos. Usar a espécie para justificar a condição de propriedade dos animais é especismo, assim como usar a raça ou o sexo para justificar a condição de propriedade de humanos é racismo ou sexismo.” (p.32, 33)
Desta forma, o interesse do animal só terá importância moral de fato quando tratarmos casos semelhantes de forma semelhante e pararmos de tratar os animais como não gostaríamos de tratar nenhum humano. Para isso, precisamos estender a eles o direito básico de não serem tratados como propriedade para que o princípio da igual consideração de interesses possa ser de fato aplicado a eles. Além disso, quando reconhecemos que nenhum humano deveria ser propriedade alheia, advogamos a favor da abolição da escravidão humana e não a favor de sua regulamentação com intuito de tornar a escravidão mais “humanitária” ou “compassiva”. Igualmente, ao levarmos a sério os interesses dos animais não somente em não sofrer, mas de ter uma vida continuada também, nós estamos comprometidos com a abolição da escravidão animal, e não com a regulamentação da instituição da propriedade animal, e comprometidos com o fim do uso de animais de maneiras que não usamos nenhum humano.
Com o fim da escravidão animal, finalmente, os animais serão de fato reconhecidos como “pessoas”, já que no universo moral existem somente pessoas ou coisas. “Em certo sentido, nós já aceitamos que os animais são pessoas; o princípio do tratamento humanitário representou uma mudança histórica que estabeleceu que podemos ter obrigações diretas para com os animais. Sua condição de propriedade, entretanto, impediu que sua personalidade (personhood) fosse concretizada.” (p.181) Isto não quer dizer que os animais sejam o mesmo que os humanos, ou que tenham os mesmos direitos que nós. Ser uma pessoa significa ser alguém, não uma coisa, que tem interesses significativos a quem pode ser aplicado o princípio de igual consideração. E, certamente, eles têm interesse em não sofrer e em não serem mortos.
Em suma, os animais não humanos não precisam ser como os humanos, ter a racionalidade dos humanos, ou qualquer outra característica dos humanos para não serem tratados e usados como recursos. Eles, na verdade, já têm tudo o que precisam para serem membros plenos da nossa comunidade moral agora mesmo: a senciência. Este livro de leitura fácil deixa extremamente evidente que a única maneira de dar sentido a nossa declaração de que concordamos que é errado impor sofrimento e morte aos animais é aliá-la às nossas ações parando de consumir, vestir e usar produtos animais, isto é, adotar o veganismo, que é a base moral da abordagem abolicionista do professor Francione:
“Nossa abolição da exploração animal poderia ser a coisa mais eficaz a fazer para salvar o planeta da incontestada devastação ambiental causada pela criação animal e para melhorar nossa própria saúde. E mesmo se não nos importarmos nem um pouco com os animais, e atribuirmos valor moral apenas aos humanos, devemos abolir a criação animal porque ela condena muitos de nossos semelhantes à fome.
Não há dúvida de que pagaríamos um preço por esse mundo tão diferente. Teríamos de renunciar ao prazer desnecessário de comer animais e entupir nossas artérias com sua gordura, à alegria de vê-los atormentados em circos e rodeios, à emoção de andarmos pela floresta e estourá-los com tiros ou feri-los com flechas, e à ciência, muito questionável, que os vicia em drogas que eles jamais usariam fora dos laboratórios. Finalmente teríamos de nos confrontar com a nossa esquizofrenia moral acerca dos animais, que nos leva a amar alguns deles, tratá-los como membros da nossa família e nunca duvidar de sua senciência, capacidade emocional, autoconsciência ou personalidade, ao mesmo tempo em que enfiamos garfos em outros que são indistinguíveis, em qualquer sentido relevante, daqueles nossos companheiros animais.Em muitos aspectos, o modo prevalecente de pensarmos sobre os animais deveria nos deixar céticos quanto à afirmação de que é a nossa racionalidade que nos distingue deles.” (p. 274, 275)
Autora: Vera Cristofani